sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Catequese e assédio.

Lembrei-me da catequese e da minha catequista nos idos anos 60, a propósito do episódio de suposto assédio sexual por um professor de religião e moral contado há dias por António Lobo Antunes.

A catequese, em particular a Marília, era este o nome da minha catequista, funcionou na minha infância como um autêntico assédio. Moral. Será o termo certo?

Não sei mas vivia aquilo com um temor imenso da senhora, uma mulher magra e seca, de cara fechada e amarga, julgo que "freira sem hábito". A sua pregação, onde não cabia nem um sorriso, nem alegria, nem conversa, incutia-nos fortemente o medo, todos os sábados à tarde. O medo tão necessário naqueles tempos em que as crianças deviam ser formatadas a obedecer, à Igreja e ao Estado.

Teria uns sete, oito anos?

Em casa, à noite no escuro do meu quarto, tremia de medo que Deus me aparecesse envolto em nuvens e vapores com o coração aberto e pingas de fogo que o grafismo da época fornecia em quantidade.

Deus era omnipresente, uma entidade que, desde o céu, via tudo, estava em toda a parte e sabia tudo o que fazíamos. A sua vingança podia ser terrível, daí aparecerem raios a sair das suas mãos...

Mas o que eu temia mais era uma aparição. Pois, porque Deus também nos podia aparecer se fossemos bons e escolher-nos para santas. E eu achava-me muito boazinha, portanto, considerava-me potencial seleccionada.

Lembro-me nitidamente deste medo. De estar no meu quarto, a luz apagada a tentar dormir e à espera que Deus me aparecesse... Algo que não me atrevia a partilhar com ninguém, nem com a minha irmã nem com a minha mãe, muito menos com amigas que certamente gozariam com este meu receio.

A Marília catequista atemorizava-nos com Deus, os sacramentos e os perigos da sexualidade. Termo que não se usava, claro, mas que era induzido subjectivamente.

Até muito tarde, acreditei que se podia engravidar por se dar um beijo num rapaz, nos lábios, claro. O pecado e a culpa, um horror.

Felizmente, deu-se o 25 de Abril tinha eu catorze anos e fui-me libertando da religião. Passei rapidamente da devoção de querer ser freira para revolucionária marxista leninista despudorada.

A liberdade sexual aconteceu naturalmente mas livrar-me dos sentimentos de culpa que a religião advogava só bem mais tarde.

Ouvir agora o cardeal patriarca de Lisboa aconselhar os divorciados recasados a absterem-se de ter relações sexuais, indo buscar uma recomendação da exortação apostólica Familiaris Consortio, de 1981, é ridículo pela sua impossibilidade real...

Não acredito que qualquer casal católico, casado segunda vez, se abstenha e viva como irmãos.

Aliás, estas recomendações são tão patéticas como a doutrina do sexo servir só para a procriação, tão deliciosamente retratada no poema de Natália Correia de 1982 a propósito do deputado Morgado:

"Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado."


O celibato dos padres, para além de ter provocado séculos de culpa e pecado, é uma imposição anti natureza. O sexo é uma necessidade fisiológica do homem, animal como os outros, e de benefícios incontáveis para o físico e para a alma... Ai, se a Marília ouvisse isto!

Voltando ao catecismo, pus-me a pesquisar na net as imagens que tanto marcaram e atormentaram a minha vida inicial mas não as encontro e não me lembro de ter guardado os livrinhos da época.

Verifiquei que o grafismo actual do catecismo e da catequese é alegre, tipo desenho animado, em que a última ceia mais parece uma festa de anos e as línguas de fogo do pentecostes uma farra de Carnaval. 

Apesar disso, parece que a repressão sexual continua...

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Cem Anos.



Há cem anos, na maioria dos países desenvolvidos as mulheres não podiam votar.

Votar como os homens foi um direito arrancado a ferros. Ter opinião própria e direito de a exercer.

Caramba, ainda se batalha por isso em grande parte do mundo.

Cem anos, em termos de história da humanidade não é nada. Quando falamos de épocas/regimes da História, tipo a Idade Média, juntamos muitos cem anos cheios de diferenças mas que para nós, na actualidade, parecem todos iguais.

Disto, podemos concluir que nos devíamos espantar menos com a continuação da desigualdade, com os seus avanços e recuos.

Há bocado, enquanto almoçava fora, a televisão ligada nas notícias, anunciava casos seguidos de mulheres mal tratadas pelos maridos, pelo menos um directo para um rapto, logo seguido do anúncio de uma outra queimada pelo marido.

Portanto, olhando dum modo macro para estes cem anos, apesar dos imensos progressos da segunda metade do século XX, as mulheres continuam a ser lixadas pelos homens na maioria do Mundo, com níveis diferentes.

Custa-me um bocado admitir isto mas não dá para outra conclusão.

Sinto-me sempre privilegiada nesta matéria porque toda a vida usufrui de liberdade pessoal.

Nasci num ano que me permitiu usufruir dos direitos conquistados pelas mulheres nos anos 60 e 70. Até a liberdade sexual, agora ameaçada.

Os homens que foram fazendo parte da minha vida, amigos, colegas, namorados, flirtados, maridos nunca me quiseram reprimir.

Não sei se alguma vez lhes passou tal pela cabeça mas certamente sabiam da impossibilidade de o fazer ou, espero, consideravam-me igual a eles.

Não sei. Só saí uma vez para jantar com um tipo, bem parecido e simpático, que quando, à mesa, peguei naturalmente na carta dos vinhos para ver e escolher ou sugerir um, disse que com ele as mulheres não escolhiam vinhos. Escusado será dizer que foi a última vez que o vi.

Ameaças de assédio aqui e ali não conheço nenhuma mulher que não o tenha tido mas nunca ninguém se despiu e masturbou numa reunião, como os casos de Holywood. Talvez por os nossos ambientes não serem aquecidos ou pressentirem a lambada certa que levariam.

Dito isto, cem anos passados, continuamos lixadas.