quinta-feira, 28 de junho de 2018

Caminho.


Apetecia-me visionar um caminho bom para o mundo mas não o encontro.
Os dias andam complexos e cresce-me a sensação de um "dejá vu" onde eu não estava. Agora estou.

Estudos antigos já previam a migração maciça dos povos do centro e norte de África para a Europa. A história dos homens é feita de êxodos, sistemas que mudam, modos de vida que acabam, novos que começam, loucos no poder. Nunca em paz. Sempre em guerra.

A destruição, a intolerância sempre cá andaram. Aos altos e baixos mas nunca falharam. Nem precisamos de ir mais atrás, basta ler a Bíblia para perceber a crueldade do homem, a ilusão do perdão divino, a maldade gratuita, o egoísmo extremo.

Até há uns anos, tive a ilusão que viveria incólume aos terrores da destruição. Afinal, nasci nos anos em que os jovens gritavam "peace & love" e todos os sonhos pareciam possíveis.

Como em apenas cinquenta anos estamos na mesma? Tecnologia de ponta, desenvolvimento científico, comunicação em larga escala, nada altera o caminho.

Vejo os acontecimentos, as atitudes, os dados, tudo a uma velocidade desumana como se eu não fizesse parte deste mundo. Como se me pudesse retirar.

Revejo fotos.Tenho saudades dum tempo que agora me parece inocente. Mas não seria.

Penso em como é bom o tio Victor já cá não estar porque não aguentaria viver a destruição do seu Sporting. Gostava de saber o que o António diria disto tudo. Não quando, já doente, encolhia os ombros, cansado, mas antes, quando a sua inteligência e sagacidade estavam em pleno. Queria pegar no telefone e ligar para o Zé Laranjo que, de Londres, diria do show do Marcelo com Trump um "Ba... trrretas" e eu responderia "não sejas tão amargo".

Vivo estes dias revivendo todas as perdas que já vivi. A doença, juntamente com a velhice, são de uma tristeza insolúvel. Agoniza-se demais para morrer. Não se avista o tal Deus misericordioso, em momento algum.

Há bocado passei nas Amoreiras - foi lá que o meu nariz começou a pingar sem tréguas - e abismei-me com o furor consumista. Lembrei-me da acumulação de roupa, acessórios e coisas inúteis em que insistimos. Ou a que não resistimos, mesmo quando sabemos que serão lixo um dia não longínquo.

Talvez ande muito afastada dos centros urbanos sofisticados, ocupada em finalizar um projecto que vejo como um abrigo para onde ir quando explodir em pleno a guerra global que me parece inevitável, mas olho para tudo isto com um terrível desprezo.

Revejo a foto deste caminho isolado e é por onde me apetece seguir. Sem tecnologia.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Catequese e assédio.

Lembrei-me da catequese e da minha catequista nos idos anos 60, a propósito do episódio de suposto assédio sexual por um professor de religião e moral contado há dias por António Lobo Antunes.

A catequese, em particular a Marília, era este o nome da minha catequista, funcionou na minha infância como um autêntico assédio. Moral. Será o termo certo?

Não sei mas vivia aquilo com um temor imenso da senhora, uma mulher magra e seca, de cara fechada e amarga, julgo que "freira sem hábito". A sua pregação, onde não cabia nem um sorriso, nem alegria, nem conversa, incutia-nos fortemente o medo, todos os sábados à tarde. O medo tão necessário naqueles tempos em que as crianças deviam ser formatadas a obedecer, à Igreja e ao Estado.

Teria uns sete, oito anos?

Em casa, à noite no escuro do meu quarto, tremia de medo que Deus me aparecesse envolto em nuvens e vapores com o coração aberto e pingas de fogo que o grafismo da época fornecia em quantidade.

Deus era omnipresente, uma entidade que, desde o céu, via tudo, estava em toda a parte e sabia tudo o que fazíamos. A sua vingança podia ser terrível, daí aparecerem raios a sair das suas mãos...

Mas o que eu temia mais era uma aparição. Pois, porque Deus também nos podia aparecer se fossemos bons e escolher-nos para santas. E eu achava-me muito boazinha, portanto, considerava-me potencial seleccionada.

Lembro-me nitidamente deste medo. De estar no meu quarto, a luz apagada a tentar dormir e à espera que Deus me aparecesse... Algo que não me atrevia a partilhar com ninguém, nem com a minha irmã nem com a minha mãe, muito menos com amigas que certamente gozariam com este meu receio.

A Marília catequista atemorizava-nos com Deus, os sacramentos e os perigos da sexualidade. Termo que não se usava, claro, mas que era induzido subjectivamente.

Até muito tarde, acreditei que se podia engravidar por se dar um beijo num rapaz, nos lábios, claro. O pecado e a culpa, um horror.

Felizmente, deu-se o 25 de Abril tinha eu catorze anos e fui-me libertando da religião. Passei rapidamente da devoção de querer ser freira para revolucionária marxista leninista despudorada.

A liberdade sexual aconteceu naturalmente mas livrar-me dos sentimentos de culpa que a religião advogava só bem mais tarde.

Ouvir agora o cardeal patriarca de Lisboa aconselhar os divorciados recasados a absterem-se de ter relações sexuais, indo buscar uma recomendação da exortação apostólica Familiaris Consortio, de 1981, é ridículo pela sua impossibilidade real...

Não acredito que qualquer casal católico, casado segunda vez, se abstenha e viva como irmãos.

Aliás, estas recomendações são tão patéticas como a doutrina do sexo servir só para a procriação, tão deliciosamente retratada no poema de Natália Correia de 1982 a propósito do deputado Morgado:

"Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado."


O celibato dos padres, para além de ter provocado séculos de culpa e pecado, é uma imposição anti natureza. O sexo é uma necessidade fisiológica do homem, animal como os outros, e de benefícios incontáveis para o físico e para a alma... Ai, se a Marília ouvisse isto!

Voltando ao catecismo, pus-me a pesquisar na net as imagens que tanto marcaram e atormentaram a minha vida inicial mas não as encontro e não me lembro de ter guardado os livrinhos da época.

Verifiquei que o grafismo actual do catecismo e da catequese é alegre, tipo desenho animado, em que a última ceia mais parece uma festa de anos e as línguas de fogo do pentecostes uma farra de Carnaval. 

Apesar disso, parece que a repressão sexual continua...

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Cem Anos.



Há cem anos, na maioria dos países desenvolvidos as mulheres não podiam votar.

Votar como os homens foi um direito arrancado a ferros. Ter opinião própria e direito de a exercer.

Caramba, ainda se batalha por isso em grande parte do mundo.

Cem anos, em termos de história da humanidade não é nada. Quando falamos de épocas/regimes da História, tipo a Idade Média, juntamos muitos cem anos cheios de diferenças mas que para nós, na actualidade, parecem todos iguais.

Disto, podemos concluir que nos devíamos espantar menos com a continuação da desigualdade, com os seus avanços e recuos.

Há bocado, enquanto almoçava fora, a televisão ligada nas notícias, anunciava casos seguidos de mulheres mal tratadas pelos maridos, pelo menos um directo para um rapto, logo seguido do anúncio de uma outra queimada pelo marido.

Portanto, olhando dum modo macro para estes cem anos, apesar dos imensos progressos da segunda metade do século XX, as mulheres continuam a ser lixadas pelos homens na maioria do Mundo, com níveis diferentes.

Custa-me um bocado admitir isto mas não dá para outra conclusão.

Sinto-me sempre privilegiada nesta matéria porque toda a vida usufrui de liberdade pessoal.

Nasci num ano que me permitiu usufruir dos direitos conquistados pelas mulheres nos anos 60 e 70. Até a liberdade sexual, agora ameaçada.

Os homens que foram fazendo parte da minha vida, amigos, colegas, namorados, flirtados, maridos nunca me quiseram reprimir.

Não sei se alguma vez lhes passou tal pela cabeça mas certamente sabiam da impossibilidade de o fazer ou, espero, consideravam-me igual a eles.

Não sei. Só saí uma vez para jantar com um tipo, bem parecido e simpático, que quando, à mesa, peguei naturalmente na carta dos vinhos para ver e escolher ou sugerir um, disse que com ele as mulheres não escolhiam vinhos. Escusado será dizer que foi a última vez que o vi.

Ameaças de assédio aqui e ali não conheço nenhuma mulher que não o tenha tido mas nunca ninguém se despiu e masturbou numa reunião, como os casos de Holywood. Talvez por os nossos ambientes não serem aquecidos ou pressentirem a lambada certa que levariam.

Dito isto, cem anos passados, continuamos lixadas.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Inverno.

Atravesso Monsanto e espanto-me com as primeiras flores de amendoeira. A lembrar as minhas origens.
Ao fundo, rio e mar estão cinzentos, reflexo das nuvens frias no céu. É Inverno.
Sinto-me com mais força. Bem estar físico em reposição depois da fragilidade em que estive. Como é fácil passarmos do bem para o mal. Num ápice. Voltar ao bem demora mais, sempre.
O dia é de memórias boas e de saudade profunda. Só morrem os que fazem falta. O pior da morte é a impossibilidade de contacto. O não ter resposta à nossa conversa. Tê-la para a parede ou ficar a moer-nos o cérebro sem alternativa.
Oiço Santana e Rio. Pedro ou Rui? Não gostando de ambos, escolho Rui, esperando que nenhum dos dois volte ao poder, nunca.
Pedro decidiu armar-se em Pedro dos lábios finos apesar dos seus não o serem. Deve ter beijado muito, importunado muitas mulheres este Pedro que o outro tem ar de não ser dotado para a coisa.
Pelo mundo, discute-se se o importunar é assédio. Depende. Se se trata de demonstração de interesse por alguém e que, sem a devida correspondência, não insiste, não é. Se esse importunar persiste e é feito em contexto de poder, passando rapidamente a imposição e ameaça, é.
Nem sempre tudo é claro nesta matéria mas acho que cada um sabe bem quando um "dar em cima" se torna outra coisa, algo ameaçador e confrangedor.
Quem, com alguma idade, e num contexto profissional, não foi nunca importunado? Por vezes, roçando o assédio? Vivi alguns episódios que podiam tornar-se nisso mas que nunca arrisquei que chegassem a esse ponto.
Nem sempre foi fácil fugir e seguir em frente porque há uma linha muito ténue entre a realidade e o que pressentimos. Essa linha faz-nos sentir, a nós mulheres, ridículas.
Ah, estou a achar que aquela atitude é o tipo a querer alguma coisa quando está só a ser cortês e a convidar para jantar? O melhor é não aceitar, certo? Falo de contexto profissional em que o ele é administrador da empresa e o eu funcionária da mesma.
Tive sorte? Talvez mas não só. Está nas nossas mãos agir logo. Há um risco? Há. Lixarem-nos a vida, a carreira. Mas também aqui, é uma opção nossa. Queremos viver uma carreira à conta disto? É o que me faz confusão nestas denúncias tardias de Hollywood.
Como diz a louca da Raquel Varela, estas actrizes não eram propriamente as operárias fabris miseráveis com um rebanho de filhos para alimentar da indústria portuguesa nos anos do Estado Novo em que o patrão não dava hipóteses.
Sobre isto, nada como ler "As mulheres da Fonte Nova" da Alice Brito e estamos falados.
Para fugir de tanta discussão, oiço David Bowie. Tudo o dia todo. Não me farto.
Partiu no mesmo dia do António, umas horas antes.