sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

2016.

Cá estamos outra vez no fim dum ano. Pressionados a fazer balanços. Ou, no mínimo, a olhar para trás e perceber como estamos depois de mais um ano de vida. E a desejar coisas boas e positivas para o ano novo, ainda que sem qualquer crença na sua concretização.

Desde que me lembro, detesto estes dias. Particularmente, o seu ponto alto que é a meia-noite de dia 31 e a obrigação de celebrar. Desde que me lembro que me sinto infeliz neste dia. Ou apenas melancólica. Ou talvez apenas ansiosa e apreensiva.

Tento lembrar-me da passagem do ano de 2006 para 2007, há dez anos, onde estava eu? Detesto números ímpares, em especial os com um sete.

Ah, já me lembro! Em 2006, estava em Londres, em casa do meu querido e saudoso amigo Zé Laranjo. Passei lá uns dias. Havia festa em casa dele, comida, copos, música boa, animação, amigos. A mim, só me apetecia estar sozinha, ir para o frio da rua, caminhar até ao rio (então ele morava perto, em Westminster) e ver o fogo de artifício no meio da multidão. O que não aconteceu. Fiquei na sala tentando sem êxito fingir alegria, fugindo como podia da dança (um dos meus horrores). Acho que acabei por ir para o quarto cedo, tristíssima, enquanto ouvia a animação ao fundo na sala, com uma pena imensa da minha incapacidade de me divertir num ambiente tão afável e confortável. Tudo isto perante a perplexidade do Zé e dos outros que não conseguiam entender o meu estado de alma. Nem eu! 

Tal e qual como quando em miúda queria participar mas a minha timidez e insegurança o impediam. Não me lembro bem do dia seguinte mas devo-me ter voltado a sentir bem, a aproveitar todos estarem a dormir para caminhar pelas ruas de Londres.

As minhas melhores "passagens de ano" foram ou sozinha (acho que na de 2008 estava engripada e fiquei em casa, aconchegada no sofá, arriscando não comer as 12 passas e feliz a beber vinho do Porto) ou a dois, jantar melhorado e muito amor.

Aproximam-se estes dias e volto a ficar melancólica, com uma apatia triste inexplicável. Os que me rodeiam perguntam se estou bem. O meu marido (é verdade, esta é uma inovação do ano) inquieta-se e mima-me. O meu filho marimba e a minha mãe já não liga.
Não tenho nenhuma razão concreta para este estado de alma. Tenho conforto, amor, alguma saúde.

Não me apetece fazer balanços. 2016 foi um ano extraordinário para mim. Inesquecível a menos que alguma demência ou Alzeimer me roubem a memória. 

2016 começou com a perda de uma pessoa da minha vida, que continua sempre presente. Tão próximo como se não tivesse morrido. Essa coisa sinistra e certa da vida que nos custa tanto aceitar. Que dói tanto. Que marca sem piedade quem fica. Certos que partir é pior. A dor na alma não sai, apenas acalma por incapacidade de outra solução.

2016 foi depois correndo, iluminando-se, e trouxe a consolidação de um amor antigo. Trouxe decisões antes impensáveis, como voltar a casar. Mudanças radicais e profundas de que não me arrependo, como sair da casa onde vivi trinta e quatro anos e recomeçar noutro lugar. Reorganização. Promessa de sempre ficar, amar, estabilizar. Coisas que estavam arredadas de mim.

2016 confirmou a dificuldade em trabalhar e ser devidamente pago. 

2016 confirmou as piores suspeitas das alterações da ordem do mundo. Preparou-nos para esperar pior em 2017.

É isso. Não consigo sentir-me bem com o mundo neste estado. Reconheço perfis na humanidade que julgava banidos, ou pelo menos, esquecidos. Reconheço a redução da crença num mundo melhor. Vejo a guerra, a violência, a injustiça e a ausência de tolerância como impossíveis de conter. 

O cenário entristece-me.

Claro que seguimos em frente com a nossa vida, o nosso dia-a-dia, esperando que a desgraça demore a chegar aqui. Com uma esperança interior de que talvez nos safemos entre os pingos da chuva, como antes da globalização. 

Claro que seguimos em frente, esperando ter saúde para ir levando, esperando o sucesso dos filhos, a longa vida dos pais, a vida boa, fazendo planos de futuro, como sempre.

Nada pára o tempo e é certo que não voltamos para trás, antes tudo continua.

Amanhã tentarei não comer 12 passas acompanhadas de 12 desejos, nem beber champanhe de que não gosto.

Amanhã vou esforçar-me por passar uma noite normal entre amigos, fazendo brindes ao bem-estar e aos planos de vida. Amanhã tentarei não me lembrar de que a seguir a um ano bom, é bem possível vir um bera, ou até mais que um, e só depois poderá haver outro melhor.

Amanhã tentarei apenas viver o momento e celebrar com humildade a vida boa que tenho tido, sorrindo pelos meus queridos mortos, sorrindo pelos meus queridos vivos, abraçando os presentes e beijando o meu amor que me aquece todas as noites. 

Bom ano!


sábado, 10 de dezembro de 2016

A possibilidade outonal do afastamento.

Não me lembro de viajar pelo Norte em pleno Outono, ou no quase Inverno. 

De Viana do Castelo a Freixo de Espada à Cinta, ou à Beira interior, o dourado domina, alindando os sítios mais inóspitos. Até entre os pedragulhos escuros e gelados de Almeida à Guarda, surgem carvalhos dourados a reverter a fealdade habitual da paisagem por ali.


Afastada uns dias, poucos, de Lisboa, da televisão e sem tempo para grande recolha de informação na net, pode-se ficar de repente noutro mundo onde o tempo passa devagar e a contemplação ganha espaço. 

Mesmo, na noite, o livro gostado em leitura cai das mãos perante o sono demolidor, ajudado pelo quente dos abafos. 

A banal constatação sobre o isolamento que o afastamento provoca, não mais que uma verdade de La Palice, a mim cria sempre alguma angústia. Tenho dificuldade em estar desligada. 

Detesto SPAs ou aquilo que penso serem. Locais de aborrecido sossego, cheios de música de passarinhos, velas e piscinas, onde o corpo deve ser supostamente separado do cérebro e deixar-se levar por mãos de diligentes massagens, óleos e cremes, olhos fechados e roupões turcos desadequados.

Música de passarinhos só a real que envolve as impressionantes cores deste Outono no norte, do litoral ao interior. 

Tive sorte em apanhar um céu absolutamente límpido na Serra do Marão, com neve fresca nos pontos altos, enquanto carvalhos e castanheiros amarelo-laranja rodeavam uma impressionante auto-estrada e a travessia do recém-inaugurado túnel.

Carvalhos e castanheiros, duas espécies antigas que sempre me fascinaram. Lembro-me desse fascínio durante uma caminhada pela Serra de Montesinho, a norte de Bragança. 
Por entre castanheiros gigantes, o chão estava cheio de castanhas, envoltas na sua protectora segunda casca prometendo sabores e muitos gazes.

Quando se avança pelos montes, realmente grandes, e se começa a aproximar a região do Douro, o meu cantinho preferido, mais belo não há, aí sim, tudo o resto perde importância. Não há Trump que o estrague. A guerra da Síria e os refugiados parecem impossíveis. Qualquer catástrofe distante.

O mundo é aquilo ali, a natureza na sua força plena. O domínio do homem afirmado nas encostas plantadas de vinhas, oliveiras e amendoeiras.

Desço pelo abrigado Vale da Vilariça, de Vila Flor até Moncorvo e tudo está dourado. Por fim, quando as curvas quase me vencem, surge a harmoniosa Freixo de Espada à Cinta e parte da minha vida que será para sempre.  

Não é só a paisagem, a imponência do que nos rodeia. São as pessoas, o acolhimento, a comida, o vinho, o azeite, o frio e o calor, as casas, o rio.

Gosto de lá estar, mesmo quando à noite se dá um raro apagão, se fica sem electricidade e resta meter na cama esperando a luz do amanhecer.

Mas seria capaz de ali viver todos os dias? Julgo que não. Falta-me agitação, o movimento. Talvez tudo saiba melhor por ser difícil de alcançar. Saber a pouco. Deixar saudades. Só sei que preciso voltar, de vez em quando, às "minhas" terras. 

Penso que não tenho uma mas muitas terras. Todas as que vou amando. E não consigo escolher. 

Sinto alguma culpa por gostar tanto do Norte sendo eu do sul. Nasci na cidade portuguesa mais ao sul, em frente ao mar, a poucos metros da ria Formosa. 

Regresso a Lisboa pela segunda circular e entro imediatamente no tal movimento que me parecia faltar antes. Entro também nas saudades de onde vim. Entro nos planos para o regresso ou para outras viagens. 

Só estou bem onde não estou?