segunda-feira, 16 de maio de 2016

Mudar.

                                                       "Não é assim tão fácil escrever sobre coisa nenhuma".
                                                                                                                               Patti Smith em "M Train"


Leio com gosto Patti Smith. Adorei "Just kids" e agora já percebi que vou gostar deste "M Train". Gosto da fluidez da sua escrita. Identifico-me com a sua melancolia do passado que não é triste nem neurótica. Gosto que esta mulher seja uma artista não confinada a uma especialidade. Gosto da voz, das fotografias, da poesia.

Antes, li num ápice um livro de outra mulher que também gosto muito de ler. Ana Cristina Leonardo em "Diário do Farol, A Ilha, a Cadela e Eu". Acho-as parecidas. A autora fecha com um post scriptum "as pessoas deviam ser deixadas em paz". 

Preciso de escrever alguma coisa sobre coisa nenhuma. Considerando coisa nenhuma as coisas pequenas que compõem os meus dias e fazem a minha vida.

Este estado letárgico e indefinido, inverno e verão, a que chamamos primavera deixa-me sempre nostálgica e com menos energia.


Os dias têm sido difíceis com a laringe tomada por algo que me tolhe a voz e me impede de respirar quando uns sinistros ataques de tosse me fazem levantar como um autómato e quase cuspir as entranhas. 

Apesar disso, prossigo sem hesitação o meu plano. Mudo. Mudo mesmo. Recupero um amor antigo. Passaram vinte anos. 


Mudo de casa, habito outro espaço. Faço-o com vontade. Passo a partilhá-lo com outra pessoa porque gosto e quero. Com compromisso. Tiro daqui, trago dali, rearrumo, refaço, sem parar. Não vou decidir tudo sozinha como nos últimos vinte anos. 


Escrevo isto com estranheza, confirmando que sou eu. 


Estamos na primavera. O ar sufoca ao almoço e gela ao vento da noite.


O Benfica ganhou e o meu Sporting não. Fico triste. Mas r
ealmente, só quero ter saúde. Não aguento os festejos exagerados. Onde anda esta gente quando é preciso manifestar-se por outros temas? Onde metem a solidariedade, a força e a vinda prá rua?

Volto à Ana Cristina Leonardo que escreveu na  revista do Expresso deste sábado que apenas "há quatro décadas, 25,7% da população era analfabeta – milagres, só o de Fátima..." Pois.


Mudo entusiasmada. Olho a casa onde vivi os últimos 34 anos com uma melancolia feliz. Revejo o bairro onde vivi tantos anos como as histórias de M Train ou a Ilha do Farol. Posso lá ir a qualquer momento!

Mudo. Sou muito apegada às coisas. Às paredes, aos livros, aos móveis, aos quadros, às cadeiras. Trago parte, uma grande parte...


Mudo com a sensação de que vou ser capaz de construir uma nova vida, tal como a Patti Smith diz que é capaz de escrever sobre coisa nenhuma desde que tenha algo a dizer sobre tal. 


O mundo continua imparável. A primavera vai chegando. O meu clube joga bem mas não vence. O meu filho está um homem. Que pena o trabalho pago escassear.


Fico à frente do computador e quero escrever mas não sai. É por estar feliz? Não sei.


Mudo. Daqui vejo o céu todo, o rio azul, o mar ao longe. Uma gaivota sentada no telhado. Gosto de gaivotas.



Mudo de bairro, de zona, de espaço. Não conheço as farmácias. Mal a papelaria. Não existe nenhum Sr. Joaquim da fruta. Há turistas e eléctricos.

Mudo. Não estou sozinha. Volto a viver a dois. Nunca esperei que isto voltasse a acontecer. Não queria. Agora quero. Tanto que fui capaz de mudar. 

Como sou teimosa, custa-me reconhecer que estou melhor assim. 

Que existe até a possibilidade de ser feliz.











segunda-feira, 2 de maio de 2016

Sábado com sol.

Sábado com sol, eu sei. Não apetece falar de morte nem de guerra. 

Em geral, apetece que se lixem as chatices, apetece sair e sentir o ar quente.


O meu sábado passou num ápice. Arrisquei não pôr despertador e acordei tarde, com um ataque de tosse para juntar aos da noite em que fui acordando sufocada. Nunca mais estou bem. Preciso de energia, força para as minhas andanças.

Faço um plano de acção para o dia. Como sempre, com coisas a mais do que a realidade permitirá. 


Ainda não saí e sei da morte de Paulo Varela Gomes. Já me perguntara como se estaria a aguentar, a escrever e a publicar. Ando a ler o Hotel dele. Li há um ano o seu texto na Granta com a emoção impossível de evitar. 

E a esperança na possibilidade de fintar a morte... mas depois da morte do António, em Janeiro, sei muito melhor como não há fuga ao cancro, quando é bera. 

Nos cenários de guerra que nos cercam também não se consegue fintar a morte. Todos os dias, surge uma nova destruição, um Aleppo, um drama, uma dor que esquarteja a alma. Não todas.


Passo por aqui (Facebook), revendo o que agita as gentes. Publiquei algumas coisas sobre os bombardeamentos em Aleppo, um ou dois "likes", três, quatro.


Ah, se eu dissesse o que penso dos taxistas, publicasse mais uma foto de viagem ou da infância, da minha mãe ou do animal de estimação que não tenho... quantos seriam?


Sábado com sol, eu sei. Apetece curtir, sair, esquecer. Afinal, pouco podemos fazer por esses desvalidos. Os doentes fatais ou os viventes da guerra.


O dia esteve lindo. Está vento, agora. Prevê-se muito calor para os próximos dias. Há que aproveitar a saúde mesmo quando vai falhando aqui e ali. O nosso mundo, o que afinal podemos dominar.
Temos que continuar, não é? Quem sobrevive. Apesar disto tudo, de tudo o que dói!


Amanhã é dia da Mãe. Maio promete acontecimentos radicais para mim. 


Como escreveu o Paulo Varela Gomes,
«A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga‑me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida.»
— Excerto de «Morrer é mais difícil do que parece», o texto de Paulo Varela Gomes para o número da Granta dedicado ao tema «Falhar melhor»


Paulo Varela Gomes
Sábado, 30 de abril de 2016