quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Mais um ano.



Há dois meses que não escrevo aqui. Todos os dias, ou quase todos, me lembro de assuntos e componho frases que incluiria num texto sobre o tema do momento mas que depois não consigo concretizar, por falta de disponibilidade para o fazer ou... simples falta de tempo... ou talento.

O tempo. O tempo que corre sempre e que não conseguimos parar. O tempo que não dá para tudo e não volta atrás. Quem não o sabe?

Há alturas em que sentimos mais essa voracidade, a velocidade do tempo, indiferente à vida. Indiferente às vidas que se vão ou se anunciam ir.

O tempo. Chegamos aqui, último dia de 2015. Já?! Como foi este ano? Caramba, foi um ápice! O tempo correu muito mais veloz ainda. Convinha que fosse mais lento. No mínimo.

O tempo do ano. É dia 31 de Dezembro e a tristeza habitual do dia invade-me. 
Sempre me invadiu, desde que me lembro. A sensação de infelicidade à meia-noite, a obrigação de brindar e sentir-me alegre, a beber champanhe e a comer passas, ambos de que não gosto. 

Esta tristeza está reforçada este ano por uma perda anunciada que me dilacera a alma e faz ter ainda menos vontade de festas e festejos. 

O tempo que não volta. O tempo que não volta para usufruir com as nossas pessoas queridas. E não era nada disto que queria escrever. 

2015 foi tão cheio de acontecimentos e, no entanto, releio o que escrevi exactamente há um ano e tudo se mantém não só actual como pior (refugiados, guerra, terrorismo). 

No meu mundo restrito, foi um ano marcante, de definição da minha situação profissional, de consolidação, de reencontro com um amor antigo que me tem permitido viver momentos muito felizes mas também um ano marcado pela dor da perda...

Cada vez mais, me importam as coisas simples do dia-a-dia. Ter saúde, as pessoas que amamos e nos fazem bem, o meu filho, os amigos féis, os valores humanistas e da luta contra a desigualdade, contra a guerra e a crueldade, pela justiça e pela paz.

É tudo tão simples, tão dito e redito, mas tão difícil de alcançar. Bom Ano Novo!




sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Letargia outonal.


O Outono na natureza é lindo. Ainda tenho os olhos cheios das cores douradas dos castanheiros que bordejam os estreitos percursos de camponeses e pastores do vale de Loriga. A romper por entre o verde fechado da vegetação, um sol ténue quase aquece os corpos competindo com o aquecimento provocado pelo esforço das subidas - e descidas - acentuadas daquelas paragens.

Foi apenas há uns dias. 

Não chegou para cortar a tristeza do fim das tardes de Outono na cidade. Ainda que recorra à varanda para inspirar os restos do ar morno do dia. Há sempre um filtro que reduz a luz, um cinza claro no ar, uma falta de definição.

Quando o dia é em casa, piora. Mesmo num dia sem nuvens, às cinco e pouco é preciso acender a luz. Lá fora está tudo esbatido, o sol que já se foi, a noite que ainda não veio. Vai aumentar a conta da electricidade. Tento aguentar ao máximo sem candeeiros acesos mas não dá. Fica frio. E tenho trabalho. 

Resisto à melancolia que se demora. Oxalá venha já a noite, a hora do jantar, o serão e a cama para chegar rápido a outra manhã, a outro recomeço. Apesar de tudo, poderá ter algum sol.

Vou fazendo o trabalho, assegurando o principal. Sem falhar o essencial. Penso em como nunca me baldei. E se fosse hoje? Estou quase a acabar "Flores" do Afonso Cruz. Já o podia ter acabado mas faço render com medo do vazio que se vai seguir.  

Volto à questão. Porque não me deito no sofá a ler? Ninguém precisa de saber. 
A não ser o meu sentido do dever. 
Que raio! Incutido desde tão cedo. Nunca páro na execução de alguma coisa. Há sempre uma tarefa, uma missão.  

Em miúda, nunca dormi até tarde porque havia sempre compromissos, os escuteiros ou as amigas, ou brincar, ou estudar. Depois, os anos da política, depois a faculdade e o casamento. Com filhos já não dá. E depois trabalho e trabalho. Agora, há que andar para não engordar mais. Agora há que andar porque gosto. 

O mundo não está para sofás. Tanto sofrimento e perdição. Nada me faz desacreditar na possibilidade de conseguir melhorá-lo. Não dá para não intervir. Nunca me convenceram que a força não se faz da união de muitos. 

Quando a tristeza do escuro cai, penso como seria se estivesse a caminhar, esgotada e gelada, pés na lama, contra a morte e o fim, com fome, sem chá de roibos para acalmar o estômago, nem casa de banho para ajudar, nem água por causa das pedras nos rins, sem abrigo nem futuro. E calo-me.



O mundo não está para sofás nem longe nem por aqui. 

Respondo a um inquérito online. Se sou feliz ou infeliz, onde estou de 1 a 10? Clico no 8. Mas hesito. Devia ser 6 ou 7... Penso no sofrimento à minha volta. Não só no distante mas também no próximo, dos nossos, dos que amo e fazem parte da minha vida. 
É possível o nosso eu ser feliz apesar do mundo. Sim, parece que sim. 

Já é noite cerrada. Felizmente tenho que sair. No aeroporto, esta letargia incómoda passa-me. Tanto movimento. Tantas luzes. Tanta gente. Tanta mistura. Nada de melancolias. Uma animação muito mais próxima da agitação política destes tempos.

O meu amor regressou bem. O carinho dum beijo e dum abraço acalmam estes males.
Afinal, sou tonta por ousar a tristeza quando sou mais que privilegiada. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Fazendeiros.

O Facebook tem disto. Nem sei como, por acaso, fui ter a um post meu de Abril de 2013. Parece tão distante este tempo. Passaram dois anos e meio. O que a minha vida mudou neste tempo. Nada é nunca definitivo. Todos sabemos mas, às vezes, esquecemos.

O foco dos dias de hoje está longe, longe destes outros dias passados numa vila de gente do campo, fazendeiros. Ficará sempre a memória boa, boa, boa da casinha que tive, do sítio que habitei e fiz meu. 



A 8 de Abril de 2013 escrevia:
Noutro mundo, aqui tão perto mas tão longe, gente simples numa vila do vale do Tejo, celebra de dois em dois anos a Festa dos Fazendeiros. Não conheço outra igual. Volta-se ao passado agricola e rural, vivido por toda a gente da terra. Enfeitam-se as portas e janelas, abrem-se os portões de adegas escondidas, veste-se como há cem anos, come-se caspiada. Montam-se os cavalos e põem-se chapéus antigos. Há foguetes. As crianças brincam felizes. Os de fora fotografam perdidos de tanto ver. Encontram-se velhos conhecidos, convidam-se os amigos. Para a próxima o farei. Há dois anos fui surpreendida com este dia. Este ano decorei a porta e vim para a rua. Para a próxima, estão todos convidados. O sol aqueceu esta explosão de vida. Foi uma tarde boa em que a recordação de tempos mais simples fez sonhar com a possibilidade de ser feliz.

domingo, 11 de outubro de 2015

Assumir.

Ainda não apetecem os dias cinzentos, de chuva e vento. Talvez por estarem demasiado quentes. O que se transpira!

No entanto, apetece rever a roupa do Inverno passado, relembrar casacos e camisolas, comprar coisas novas (para quem pode), mais da moda. 

Ah, e os sapatos da estação? Igualzinhos aos dos anos 70, ou 80, ou 90. Porque não os guardei?

Guardo sim, há muitos anos, uns 20, peças de roupa que foi especial, de excelente qualidade, para um evento particular, que vesti duas ou três vezes. Todas as estações as olho, não experimento e continuo a guardar. Para um dia em que volte a ter cintura fina e menos uns largos quilos. 


A semana passada recuperei umas camisas sedosas do início dos anos 90 que, na época, me ficavam larguíssimas mas agora estão óptimas e na moda. 

Foi neste contexto que resolvi experimentar as tais peças muito boas que andam a ocupar os armários há anos e anos. De que nunca me desfiz. 

Finalmente, resolvi assumir que vai ser difícil voltar a ter menos 10 ou 15 quilos. Que tenho que usar medida L e não M ou S. Que se voltar a acontecer será muito provavelmente por estar doente. Que não sou suficientemente vaidosa para prescindir de  uma boa refeição e um copo de vinho. Ou dois. 

A maior parte das coisas não passava nos braços, no peito, na cabeça, tendo corrido o risco de ficar entalada na minha própria roupa. Meti tudo num saco para dar e ganhei espaço nos armários.

Um recomeço. Lembrei-me da política e dos partidos. É melhor assumir que nada será como antes. 

Vivemos no meio de novas análises e prognósticos, dominados pelos vaticínios de fim deste e daquele como se tudo estivesse igual, como se nada tivesse mudado. Mas não é assim.

A sociedade e os interesses das pessoas mudaram e impõem estruturas diferentes. Situações diferentes. Alternativas. 

Não vai mais haver espaço para as organizações tradicionais, os partidos como foram até hoje. Tal como eu tenho andado a fugir da mudança do meu próprio corpo, muitos protagonistas parecem andar ainda em fuga. 

domingo, 4 de outubro de 2015

A Catarina.

A Catarina era mãe de uma grande amiga minha. Morreu. A sua morte era esperada, serenamente esperada, depois de muito sofrimento do corpo e da alma. Não devia ser possível que o fim fosse tão doloroso, já basta o próprio fim.

Eu gostava da Catarina, ríamos juntas. O sentido de humor é uma característica daquela família, daquelas mulheres, mãe e filha. 

O humor ajuda muito a superar as adversidades. Sei isso pelo meu pai. Rirmos de nós e da nossa situação. Sobretudo quando é agreste e rir é ainda mais difícil. Alivia.

A Catarina nunca se queixava apesar dos anos de diálise, braços furados, veias inchadas, dores fortes no corpo, mau estar... E a terrível dependência para os rins funcionarem. Tudo suportado com um sorriso. Sem dúvida que para tal contribuiu a minha amiga e a sua capacidade de dar, cuidar, rir e fazer dum momento de angústia uma festa. 

A Catarina não ficava em casa. Apoiada numa bengala ou numa cadeira de rodas, havia sempre programa organizado pela filha.

Há meses, no começo do Verão, a minha amiga juntou família e amigos mais próximos, num domingo luminoso de Junho, sobre o pretexto duma caracolada para a mãe. 

Realmente, foi uma despedida mas ninguém no momento se lembrou disso. 

A Catarina lá estava, sentada à sombra duma frondosa árvore, rodeada de amigos.
A minha amiga conseguiu empurrar a cadeira de rodas da mãe e dar voltas ao jardim, brincando como se de uma criança se tratasse. 

A Catarina refilava mas alinhava, sabemos que cheia de dores.

Tempos depois desistiu da diálise, não querendo suportar mais aquele tormento. Fui vê-la, conversámos. Rabujou dizendo que a filha estava cada vez mais endiabrada. Ela, muito afeliada (um termo do nosso Algarve comum). Nesses dias só a morfina permitia aguentar.

Por fim, a Catarina morreu. Durante a noite. Sem ruído, com o seu belo sorriso de mulher bonita, pequenina, do Sul. 

A Catarina teve a melhor filha do mundo, a minha amiga. Não conheço mais dedicação e atenção, mais altruísmo, mais bondade. Melhor fim de vida. 


No velório, lá estava a Catarina, sossegada. A minha amiga com o seu olhar e sorriso doce, enternecida com a mãe. Também ali. Rodeada de mulheres.

Era um domingo de Agosto. Dois meses depois do outro domingo, também este foi de sol e calor abrasador. Fiquei na sombra da porta da capela a observar enquanto rezavam um terço sob a vigilância de uma imagem de outra mulher imaginada santa. 

Eu não rezo e, nestes momentos de emoção, não me assalta qualquer fervor religioso antes repenso sobre a injustiça de Deus e da sua doutrina.

A minha amiga tem uma fé inabalável e acredita que encontrará a mãe mais tarde, um dia, no reino dos céus ou noutro espaço qualquer belo e tranquilo.

A vida destas mulheres é um exemplo de afecto e vontade que contradiz o comportamento da sociedade actual para com os velhos, os pais e os familiares ou amigos na hora da doença, do sofrimento, da morte. 

Não tenho a capacidade de dar da minha amiga mas quero muito seguir o seu exemplo quando um dia for necessário. Serei capaz?




sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Manhã de Outono.


O Outono, com os seus dias curtos, acaba por surpreender.

Hoje, contrariando a vontade de me sentar com o computador à frente, mal acabado o pequeno-almoço, resolvi fazer a minha caminhada manhã cedo em vez do fim da tarde, cada vez mais difícil. 

Soube bem sentir o fresco da manhã, meio cinzenta. Soube bem ver os carros no trânsito da segunda circular e não estar em nenhum. Antes, passar-lhes por cima. 

Pensar como é bom não ter horas certas todas as manhãs. Pensar no meu mundo paralelo. 

Ali ao lado, o estádio universitário permite ultrapassá-los na calma e dar uma boa volta entre pistas e pinheiros e esculturas de corpos atléticos. Muitas vezes, ultrapassam-me em corrida e fico na dúvida se são reais ou voltam para o seu poiso de há anos...

Volto ao bairro. Está tão bonito no Outono como na Primavera. Passo no ginásio ao ar livre onde não pago para fazer exercícios ao sol. 

Nos alongamentos, fotografo mais uma vez a igreja ao fundo do jardim. O sol voltou em força e queima, quente. Como se fosse Verão. 









quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Véspera.

Estava aqui no sossego da minha sala a trabalhar quando o telefone fixo tocou. Dei um salto, admirada com o toque. Praticamente não recebo telefonemas neste número. Mantenho-o porque faz parte do pacote.

O número começava por 22. Era, portanto, do Porto. Já tocara de manhã mas não cheguei a tempo. Atendi. Um jovem com acentuada pronúncia do norte disse ser da Meo. 

Antes, tive esperança que fosse uma sondagem, uma tracking poll, um barómetro, algo em que pudesse exprimir a minha opinião.

Não era. A mim nunca me sondaram. Nunca, que diabo. Era um jovem da Meo a oferecer serviços de televisão. Já tenho. Mas está satisfeita? Estou. Mas pode ajudar-me com outra coisa. Expliquei rapidamente a questão relacionada com os GBs no smartphone. Não era com ele mas podia indicar o número 16209. Ele era dum call center no Porto. Perguntei o nome e a idade. 20 anos e estava em formação. Calculo que não possa responder mas quanto ganha? O rapaz dizia "vocemecê" e respondeu que não podia dizer. Tolo não é.

Desejei-lhe sorte e desliguei. Desgraçado. Ainda assim estará provisoriamente fora da percentagem de 31,8% (116 mil jovens entre os 15 e os 24 anos) de jovens desempregados neste Agosto. Caramba, é muito. Praticamente um terço da população jovem.

Apetecia-me ter aproveitado para fazer eu um questionário. O que sabe do país, de política? Vai votar? O que sonha para o futuro? O que pensa fazer para o realizar?

Ainda ontem fiquei assustada com o nível de iliteracia política (só política? duvido) dos jovens. É certo que se tratava de uma reportagem de rua do Canal Q mas a ignorância era aflitiva. Conhece a Catarina Martins? Não. E é capaz de votar no Páf? Sim. E no CDS_PSD? Não, isso nunca. Mas vai votar? Não sei, talvez. Versão resumo rude sobre uns poucos jovens apanhados na rua. 

Teria este rapaz com pronúncia do norte barba como todos agora? Uma autêntica praga. Homens bonitos estão medonhos com barba. Já não se trata só daquela penugem pseudo-trendy e sexy de três dias. Não, uma barba grande e aspra que emagrece as faces, acentua a falta de beleza ou anula-a, conforme os casos. 

O país é de quem cá vive, penso. Até dos que usam barba :)
Não se pode não participar, não querer votar. Vendo bem, é o grande momento em que contamos. Com o nosso voto. Em que fazemos a diferença, seja qual for a opção.

Muitos, desencantados com os políticos e as sucessivas governações dizem que não vão votar porque não acreditam em nenhum político. Este cepticismo não se deve materializar na abstenção, na ausência de posição. Antes num interesse maior. Não existe outro sistema melhor, vivemos neste e ele implica com todo o nosso dia-a-dia. Não há vida à parte da sociedade mesmo que se seja eremita...


Para além de todas as medidas de austeridade e de destruição da democracia (acesso gratuito à educação, à saúde e à justiça, por exemplo), o que mais me indigna e revolta nestes senhores que nos governam é o desprezo total pelas pessoas. Pelas pessoas mais frágeis e mais pobres. 
O materialismo extremo. O diz que disse e o passa culpas permanente. A mentira como metodologia. A ausência de valores. A propaganda do medo e da subserviência. A mediocridade.
O que está em votação é o querer ou não a continuação desta violência psicológica que destrói aos poucos qualquer tentativa de integridade, de bem, de solidariedade ou conforto.
Gostei de ler a Luísa Meireles no Expresso "E já só faltam quatro dias..." que recomendo. 


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Andanças de Ina.

Ontem à noite faltou a luz durante uma meia-hora. Estava na sala e, de repente, pum, tudo escuro, casa, rua, não havia lua. 

Já não sabemos viver sem electricidade. Assusta a escuridão total... Depois, os olhos vão-se habituando à ténue luminosidade duma vela. Mas estranha-se.

O momento fez-me logo lembrar uma pessoa que conheci na viagem aos Açores deste Verão.

A bordo do "Gilberto Mariano" que faz o triângulo das ilhas centrais
Mal o barco que faz a travessia entre o Faial e S. Jorge, largou reparei numa jovem rapariga, com uma grande mochila às costas, roupa gasta, chapéu de pano na cabeça, magra, cabelo escuro mas pele clara. Falava sozinha, ou cantava. Mal se sentou, tratou de pendurar peças de roupa a secar nos bancos vazios ao seu lado... 

Estávamos cá fora, na plataforma de cima do "Gilberto Mariano". O dia nascia magnífico de azul, mar plano, ar menos húmido, o que por ali é sempre uma excepção.

Eu oscilava entre alguma impertinência interior por me ter tido que levantar às cinco e meia da manhã e o grande entusiasmo pela viagem, louca para captar tudo. Sem conseguir. Demasiada beleza e força da paisagem. Mar, ilhas, azul, verde, nuvens, laranja, o pico do Pico, um pormenor aqui, outro ali, ai que queria absorver tudo... para partilhar? Para ficar bem interiorizado pois, nesta idade, é difícil repetir os destinos.



A Horta, Faial, 7h 
Andava de um lado para o outro do barco, a ver e a fotografar, máquina, smartphone, não fosse algum falhar. Ora a ilha do Faial que deixava para trás, iluminada pelo sol nascente, ora a ilha do Pico, à frente dos olhos, na sombra da imensa montanha que domina o triângulo das três ilhas.

Consegui não enjoar nessa viagem. O ar estava fresco e limpo, aparentemente sem a humidade habitualmente nos oitenta ou noventa por cento, e o mar calmo, tornando possível estar a pé e rodar a cabeça, sem vontade de vomitar.

Acabei por meter conversa com a tal rapariga que viajava sozinha. Estávamos a chegar à Madalena do Pico e olhávamos ambas para a montanha completamente limpa.


Passagem por S. Roque do Pico 
É impossível não ficar fascinado. Acabámos a conversar. Ela já tinha estado lá em cima e eu também. Há uns anos. Adorou. Voltou. Como eu.

Descobri que a Ina é israelita, 30 anos, e viaja sozinha pelo mundo. Trabalha uns meses como educadora de infância para ganhar dinheiro para viajar outros tantos. Sozinha. Naquela altura, não falamos mais nada.




A Ina sentada com o seu chapéu vermelho, na chegada à Madalena, Pico
Quer na Madalena, quer em S.Roque do Pico entrou no barco uma multidão de pessoas e perdi-a de vista. Só sabia que também ía para S. Jorge, para conhecer a ilha. Como eu.

A aproximação à ilha tornou explícita a sua geografia. Povoações nas terras planas junto ao mar (as chamadas fajãs) no sopé de enormes montes escarpados, criadas pela lava dos muitos vulcões que deram origem a S. Jorge. Todo o centro da ilha, que tem apenas oito quilómetros de largura por cinquenta e seis de comprimento, é feito de enormes montes alinhados, rondando os mil metros de altitude que caiem abruptos para o mar. 


Lá em baixo a vila da Calheta, S. Jorge
Os vulcões alinhados de S. Jorge
Nessa mesma tarde, uma vez instalados na esplêndida Quinta de São Pedro, a um quilómetro de Velas, depois de um revigorante banho de mar na Fajã do Ouvidor e dum almoço de filetes de abrótea, decidimos subir até ao Pico da Esperança, o ponto mais alto de S. Jorge. Não dava para perder um só bocadinho destes dias.

Percorríamos o caminho de terra batida, contornando e subindo montes, quando deparamos com a nossa "amiga" Ina sentada à beira do caminho a descansar e a comer uns frutos secos. Sempre de chapéu vermelho. Por aqui? Que engraçada coincidência. Sim, porque não tínhamos planeado aquele passeio. A Ina tinha subido desde Velas, nem sei a quantos quilómetros, a caminhar desde as dez, hora a que o barco chegou!

Nós estávamos de boca aberta porque ali as subidas são a sério, quanto mais com a casa às costas...

Também vão até ao Pico da Esperança? Já vos apanho!


E apanhou, junto ao sítio onde se despenhou um avião em Dezembro de 1999... 

Lá a vimos subir, pequenina, sempre a andar.
Fizemos o resto do percurso juntos. Eram quase seis horas e as nuvens começavam a envolver-nos. Chegados à cratera, ao cimo, nós tínhamos que voltar para trás, uns cinco quilómetros até ao carro. A Ina ía descer pelo outro lado... Onde iria dormir? Não sabia, algures, quando anoitecesse. 
O Pico da Esperança, S. jorge
Convém dizer que por ali não há vivalma. A densidade populacional é muito baixa. As povoações são todas lá em baixo, junto ao mar. Ela queria chegar à Calheta que se avistava lá em baixo, no lado sul da ilha, longíssimo...

Entretanto, soubemos que estava a estudar neuro-biologia e queria fazer o doutoramento... Talvez voltasse à Horta, Faial, para seguir num veleiro até ao Reino Unido. Havia um inglês que estava a recrutar tripulação para levar o veleiro para Inglaterra mas ela estava hesitante em seguir com ele.

Entretanto, caminhava, smartphone (Samsung) na mão, com o google maps, gps, sem hesitações.  Despedimo-nos no cimo do Pico da Esperança. Talvez nos encontremos amanhã. E encontrámos. 

No dia seguinte, fizemos o caminho da Fajã dos Cubres até à Fajã do Santo Cristo, a mais conhecida pela dimensão da sua lagoa, cinco quilómetros para cada lado, "junto ao mar".
Sobe, desce, um extasiamento para a vista, agora em baixo. 


Caminho até à Fajã de Santo Cristo, S. Jorge
Voltávamos, ensopados em suor pois o nível de humidade é elevadíssimo, numa subida difícil, quando surge a Ina, em sentido contrário, a mesma roupa, a mochila maior que ela, desta vez com o apoio de um bastão, ai não. Tinha dormido debaixo dumas árvores na descida, tinha ficado com tudo molhado por causa da humidade mas de manhã tinha feito o percurso da Fajã d' Além, muito puxada, descida e subida aos esses, tínhamos que lá ir. Belíssima. Imperdível, disse ela! 

Mas como conseguia já estar ali!? Andando. Queria fazer a montanha que sobe desde a lagoa do Santo Cristo para o cimo da ilha e depois atravessar a ilha para ir dormir no parque de campismo da Calheta... Não será demais, perguntei, advinhando o cair da noite antes do destino. Já eram cinco e, por muito rápido que caminhasse, precisaria dumas cinco horas para tal percurso.

Logo se vê, respondeu. Despedimo-nos, convictos que a voltaríamos a encontrar no dia seguinte, ou noutro. Mas não. Lamento não ter feito uma foto, não ter ficado com um contacto. 

Fiquei fascinada com as andanças da Ina. Seria eu capaz de me meter assim ao mundo, a pé, sozinha? Então e todas as questões operacionais, menos românticas, como a higiene pessoal? Ou a solidão da noite? O escuro da noite na montanha, naquele isolamento belíssimo mas assustador quando as nuvens descem e o vento sopra forte e gelado? E se adoecesse? É certo que aos trinta é tudo mais leve...

Foi por tudo isto que me lembrei da Ina quando faltou a luz e fiquei na escuridão sem qualquer perigo do conforto da minha casa.

Quem não gostava de ter feito algo assim? Partir. Largar tudo e todos, chegar a um destino num país com uma língua imperceptível, caminhar, decidir para onde rumar no momento. Ter coragem para o fazer.

Lembro o Nuno Ferreira, jornalista que há uns anos percorreu Portugal e os Açores a pé e partilhou essa experiência em livro. 

O conhecimento que se consegue caminhando é tão diferente. E caminhar é maravilhoso.

No cimo do Pico da Esperança, S. Jorge

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Botas.


Onze anos e meio e muitos quilómetros depois, acho que este foi o último grande percurso das minhas amadas botas. 


Agora permanecem na varanda com o objectivo de secarem bem. Comprei uma cola super forte que me garantiram colar a sola. Esta, sem aviso, descolou precisamente quando, lá em baixo, em plena Fajã d 'Além, na magnífica ilha de S. Jorge, me preparava para iniciar a íngreme subida, depois de terem resistido à dura descida debaixo dum autêntico dilúvio. 

O baraço azul encontrado no chão salvou-me aguentando-se até ao fim do caminho, pedra após pedra. 

Será que recuperam? Ou a confiança está perdida?

A verdade é que ainda não me atrevi a tentar repará-las com receio de estarem incapazes para novas aventuras.

Nestas andanças, as botas fazem parte de nós e deviam ser eternas!


quinta-feira, 16 de julho de 2015

Xuto.

O par Schauble e Merkel deve ter ficado desiludido com a aprovação do maldito acordo pelo parlamento grego. 

Certamente, um obstáculo à expulsão da Grécia do euro programada pelo ministro das finanças alemão. 

A sofrida votação do parlamento grego parece ter dado alguma força à facção mais moderada do sinistro Eurogroup. Pelo menos, o sr. Draghi já fala abertamente da inevitabilidade de cortar a dívida grega. Com alguma firmeza. De encontro aos pareceres disfuncionais do FMI. 

O não, votado ontem à noite pelo belo Varoufakis (de quem continuo fã!) era talvez uma oportunidade de tudo recomeçar (como escreve no seu blogue) mas talvez com consequências ainda mais penosas para os gregos comuns?

Talvez. Só podemos escrever talvez, talvez, talvez. 

Ontem, na SIC Notícias ouvi um debate interessante em que participava o embaixador Francisco Seixas da Costa e o economista Pedro Lains, tentando interpretar Tsipras e o acordo. Que c
onsideraram um falso acordo que vai acabar por cair pela sua impossibilidade. Vamos saber.

Miguel Esteves Cardoso, o MEC, escreve que todos opinamos sobre a Grécia, mesmo sem nada saber...

É verdade. No meu caso, não consigo ficar indiferente aos acontecimentos. Tento informar-me o melhor possível, sobretudo na imprensa inglesa, e ter uma opinião baseada na empatia e na intuição.

Uma coisa estou certa. Estamos bem lixados.

sábado, 11 de julho de 2015

Da humildade ou da falta dela.

A falta de humildade dos nossos governantes enerva-me muitíssimo. 

A arrogância cheia de desfaçatez com que fazem declarações sobre os outros indigna-me. 

Ouvia Pedro Passos Coelho sobre a dívida grega, dizer, com aquela voz sempre monotonamente inchada, que o tempo escasseia e que perdoar uma dívida está fora de questão, afirmando-se mais papista que o papa, como se realmente ele fosse determinante para a decisão. Não passa de ajudante, o que, infelizmente, já causa bastante dano.


O que pensa um homem destes sobre Obama, por exemplo? Quero dizer, o que pensa da grandeza de Obama? Ou acha-se ao nível!? Ou sobre Francisco, sobre a grandeza de Francisco?

Para além da falta de humildade, a mentira institucionalizada de Passos Coelho e seus acólitos revolta-me todos os dias.

Não somos a Grécia, nem os portugueses os gregos, mas confio que, na hora de votar, tenhamos discernimento para distinguir o bem do mal, a verdade da mentira, a cobardia da coragem, a subserviência da dignidade.

Recordar Atenas.

Gostei muito de Atenas quando lá estive.

Foi em Julho de 2009, vendo bem, já passaram seis anos! 
Gostei de Atenas, das ilhas, das pessoas. Achei os homens lindos, altos, morenos de olhos esverdeados. Apesar de todos os meus amigos não gostarem especialmente de Atenas, eu gostei.

Na altura, o meu foco era visitar a Acrópole de Atenas, outros locais e monumentos que marcaram a minha adolescência. Porque tive uma paixão pela cultura da Antiguidade Clássica, especialmente pela arte, a escultura, lá pelos meus doze, treze anos. Estudei aquilo tudo, aprendi palavras em grego, sonhei com a Grécia. Depois passou mas, quando fui a Atenas, essa antiga paixão voltou.





8 de Julho 

domingo, 28 de junho de 2015

À volta, no Verão.

Que saudades sinto de escrevinhar aqui e ali, estar sempre a par, comentar, não deixar passar nada mas o tempo é finito. Estou envolvida em demasiadas coisas? Talvez. 

A velocidade dos acontecimentos também não ajuda. O texto dum dia, se guardado para revisão e acabamentos, fica ultrapassado num instante.

E que dias estes. 
Uma semana corresponde a um mês antigo, ou talvez mais. 
No domingo passado estava fresco, muito mesmo, havia esperança num acordo com a Grécia, uma ilusão ainda na possibilidade da a Europa ser uma união, os atentados terroristas na Tunísia, Koweit e França não tinham acontecido. Tal como as sinistras execuções do exército islâmico no Iraque e na Síria, reforçando o horror em novas formas de maldade na morte. 
Cada vez mais perto.

O Verão vai andando, esplêndido em luz e calor, mas nem o optimismo dos dias grandes consegue abrandar a preocupação que sinto com as perspectivas do mundo. Começa a parecer inevitável a catástrofe, o declínio, a guerra, a dor, a morte.


Revolta-me a inoperância dos mandantes e a impotência dos mandados.
A história repete-se perigosamente. Como se todo o conhecimento do passado, todos os alertas, comentários, factos - factos, que factos! - não servissem absolutamente para nada no caminho do precipício.

Observa-se as forças em presença, as atitudes e os comportamentos, a insistência nos erros e parece que poderia ser evitável este caminho. Mas nada muda.

Nós, os habitantes deste território - falo do país, da Europa, do Mundo - que não temos o poder, assistimos, paralisados, ao nosso destino, como se não fosse possível fazer para mudá-lo.

Os decisores actuais não sabem como agir, ou simplesmente não procuram saber, fogem, metem a cabeça na areia, esperando que uma força divina resolva. Mas essa força não existe. E nós, os números que supostamente somos a razão de tudo, também não sabemos como agir.

Os donos do mal progridem. Sejam os mais ferozes defensores do capitalismo financeiro, sejam os mais sanguinários assassinos em nome dum totalitarismo bárbaro. 
Em ambos, apenas conta a lei da força imposta a todo o custo, pelo terror, pela morte, pela asfixia. Uns praticam o horror mais imediato e básico, outros um mais sofisticado e demorado.

O que os move? 

Não adiantam todo o desenvolvimento tecnológico, todo o progresso, todos os avanços da ciência, toda a educação, tal como não adiantam este sol fantástico. Ajudam a amenizar, sim, a fazer-nos esquecer, a adiar. O mesmo azul esplêndido de Verão que não salvou as pessoas que apanhavam sol nas suas férias à beira-mar na Tunísia.

Ontem, estava na praia, num dia magnífico, a pensar nessas pessoas. Se aparecesse ali alguém a disparar indiscriminadamente, não haveria defesa possível, abrigo, fuga. A nossa fragilidade é brutal. Assusta.

Está mesmo muito calor hoje. 
É domingo à tarde, bebo água fresca, em casa, à sombra. Oiço a Norah Jones, baixinho. Espero o fim da tarde para ir dar uma volta de bicicleta. Talvez antes vá petiscar uns caracóis, beber uma cerveja, sentir o vento. Ver o sol a pôr-se no horizonte, o céu laranja e roxo. Depois sentir o fresco do anoitecer.

Tudo coisas simples mas que em demasiados sítios do mundo, demasiado perto, não poderia fazer!


sexta-feira, 5 de junho de 2015

Jacarandás que nos salvam




Há dias em que tudo parece desmoronar. Dias difíceis que é preciso contornar. 

Em geral, a seguir a um desses dias segue-se um melhor e tudo parece outra vez viável.

Desde miúda, resultado da minha educação fortemente católica, que quando me sinto feliz - ou o mais aproximado disso -, pressinto a possibilidade de vir a acontecer uma coisa má, qual punição. 

Desde sempre que vivo com esse sentimento de culpa quando estou bem, nos momentos felizes. 

Sei que é uma estupidez mas é algo que depois acaba por se confirmar.

A vida faz-se assim de altos e baixos. Felicidade e infelicidade. Harmonia e desarmonia.

Os dias têm passado velozes entre a irregularidade da vida e o improvável que acontece.

Marcados pela beleza dos jacarandás em flor de Lisboa. 


Lisboa azul e lilás ao olhar para cima. Lisboa cinzenta e lilás ao olhar para baixo. 

Ando a ver se não escorrego. 

Na calçada portuguesa, claro, sempre com pedras soltas, aqui e ali. Como a vida.

E, nos dias maus, temos os jacarandás... para nos salvar.





quarta-feira, 13 de maio de 2015

Falhar melhor na Primavera.

Pela hora do almoço, talvez pelas duas, o ar começa a ficar cheio de flocos de algodão dos choupos. Como há algum vento, esta "neve" entra por todo o lado, cobre a rua, a varanda, prende-se nas plantas, corre pelo chão. Não dá para tomar café na varanda.

Parece que são duas a quatro semanas disto. É Primavera. 



É bom morar rodeada de árvores. Ainda por cima, árvores que vi crescer. 

Envolvem o prédio, dum lado e doutro, ultrapassando-o em altura. Cada estação tem as suas coisas, sombra demais no Inverno, frescura e mosquitos no Verão, pólens na Primavera, folhas douradas no Outono. 

Às vezes, os ramos dos pinheiros crescem batendo nas janelas e temos que esperar meses pela autorização municipal de corte. Quando há vento forte, convém não deixar o carro por perto. 

A Primavera traz coisas, à semelhança dos pólens. Há uma descompressão quando acabam os dias escuros, frios e molhados do Inverno. Há sempre algo novo.

Há bocadinho, tocaram à porta. Era um vizinho dos antigos, de sempre, com o envelope de papel almofadado da revista Granta na mão. "Estava ontem na sua caixa de correio meio a sair, alguém podia tirar, resolvi guardar, aqui está".

Agradeci, feliz. Renovei a assinatura apesar dos cortes do último ano e meio. Entre gastar numa roupa qualquer e receber os quatro números da Granta, optei por esta. 

Receber um novo número é sempre um momento feliz. Foi mesmo antes do almoço. O que permitiu leitura fresca. E que leitura! 


O tema do nº 5 da revista é "Falhar melhor", uma expressão de Beckett. Como diz Carlos Vaz Marques, o director, esta expressão "é de tal modo poderosa, que corre o risco de vir a banalizar-se". 

Revendo as palavras do escritor irlandês que serviram de mote para os textos desta revista: "Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor".

Mesmo a calhar. Tentar outra vez é comigo. Agora. Falhar também.

Durante o almoço, leio o primeiro artigo, num ápice. E com um nó. "Morrer é mais difícil do que parece", do Paulo Varela Gomes. A situação dele. Agora. Que texto incrível, forma e conteúdo. A força de alguém na disputa entre a vida e a morte. A realidade do autor.

Fico a pensar, durante o café, enquanto olho os flocos de algodão na rua. Incontornáveis. Como a morte. 

A vida está em pleno na força da rapariga que vem limpar a minha casa uma vez por semana. Despede-se e parte de bicicleta. Comprou uma das minhas bicicletas. Acordámos um valor, pago em serviço durante umas semanas. 

Sorrio perante a alegria dela. Fico com a sensação de a ter influenciado nesta opção. E assim, vou revendo a bicicleta que estava parada, sem uso.
Recomendo cuidado, repito instruções. Vejo-a pedalar rua abaixo. 

Volto à cozinha. Na TSF, oiço os Sinais do Fernando Alves. Voz boa, temas acutilantes.

Sento-me para escrever. Hoje é o dia em que o Acordo Ortográfico se torna obrigatório. Não me passa pela cabeça aplicá-lo. Pelo menos, na minha escrita privada.

A rua está coberta de branco. Penso em tentar outra vez sabendo que falhar de novo é sempre certo. Sabendo também que há sempre a hipótese de resultar.

Mesmo a propósito, faz hoje 50 anos que foi gravado (I can't get no) Satisfaction. 




sexta-feira, 8 de maio de 2015

Lá fora.

Desenho de José Mateus

Lá fora a minha rua está branca de algodão que o vento espalha. 
Tomo café sentada na sala e espanto-me com o manto branco que cobre tudo. Estamos em plena primavera e as árvores em plena vida.
Há quem espirre sem fim, eu só me aflijo com a hipótese do interior da casa ser também colonizado pelos farrapos de algodão branco que os plátanos espalham.


O dia está morno, a passar de azul para um cinzento triste. 


Tão triste como a notícia da morte. A morte duma pessoa conhecida, de quem gostava, duma mulher que admirava. Um choque quando soube. Tinha deixado de a "ver" no Facebook. Como outras pessoas que desaparecem do nosso ângulo de visão e na voracidade dos dias, nem reparamos. Só tarde demais.

Sempre o mesmo raio de doença que parece seleccionar os bons, só os bons. Que merda! 

Fiquei muito triste, a tarde ficou estranha. Senti um arrepio profundo, um alerta. Um alerta para não desperdiçar a vida.

Horas antes, tinha recebido uma mensagem desesperada duma amiga. Uma mensagem de desistência perante a impossibilidade de conseguir trabalho. O optimismo e a alegria tão seus a definharem, a darem lugar à tristeza, à impotência. 

A impotência para fazer algo, um nó em procura duma solução, de ajuda, o que fazer?

A tarde cada vez mais nublada. Uma dor no peito. Uma revolta isolada.



Fotografia de cat

Somos o que escolhemos ser, diz o primeiro-ministro numa biografia de si. 
Tornou-se um homem feio, grosso. Nem o fato de Verão, cinza claro, ajuda. Inauguração de época. Troca com o azul escuro do Inverno. Mau corte.

Penso numa velha questão. A aparência reflecte o ser, o comportamento, a atitude, a postura? Nem sempre mas quase sempre. Neste caso, sem dúvida.

Penso na quantidade de sacanas que detém o poder neste país e noutros, indiferentes ao sofrimento de tantos, defendendo que o país está melhor, ainda que cheio de pessoas com a vida desfeita.

Ignoram os factos do alto dos seus fatos. Ou será tudo fato agora?

Cada vez conheço mais pessoas com a vida destruída, pessoas honestas, que querem apenas trabalhar, ganhar para comer, para ter o mínimo, pessoas capazes de dar, que alguém contabilizou como destinada a não receber.

No outro dia à noite, numa cerimonia de prémios para jovens talentos, mais de um terço dos vencedores estava fora do país. Nas várias categorias. A sua ausência do palco reflecte o suposto país melhor. O trabalho e a criatividade destes jovens fazem acreditar na capacidade humana de resistir e encontrar caminhos alternativos.


Mas há sempre os que não são excepcionais, ou apenas não tiveram a oportunidade de o ser. A maioria. Que não se ouve.

Somos o que escolhemos ser: um empresário corrupto, um político indigno, um subserviente arrogante, um inculto sem espelho, um mentiroso militante, um gestor sem escrúpulos. 
São estes os modelos que o poder defende?

Tudo indica que sim.

Lá fora a vida continua, o ar branco, nem frio nem quente, indiferente a quem passa. 


Uns espirram, alergia ao rubro. 
Outros sucumbem, face à desesperança. 
Outros morrem, simplesmente.