terça-feira, 25 de novembro de 2014

Violência.


Foi há bocado. Em plena tarde e luz do dia.

Saí do metro em Picoas, na Tomás Ribeiro, para subir a rua e virar mais à frente para a António Augusto Aguiar, onde é o meu médico. Ía depressa porque faltavam 5m para a minha consulta marcada para as 16h. 

Dois quarteirões acima, uns dez metros à minha frente, sem mais, vi um homem grande agarrar com violência o cabelo comprido duma rapariga que ía ao seu lado. Não tinha reparado neles, envolvida nos meus pensamentos de ressaca dos acontecimentos que ensombram o país. Sentia o sol e a aragem fria que apareceram para alegrar a tarde.

Numa primeira impressão, pensei que se tratava dum pai a zangar-se com a filha jovem adolescente, tal era a diferença de altura entre eles. Depois percebi logo que era um homem e uma mulher. E que ele estava a gritar com ela, a empurrá-la e a ameaçá-la. 

Fiquei logo nervosíssima. Olhei à volta, ninguém. Do outro lado da rua, um Pingo Doce mas nem um segurança à porta. 

Nunca vivi nem vi uma cena assim. Ela foi andando para trás, até ficar encostada a uma montra abandonada. O tipo era bem alto e forte, fato castanho, falava alto e crescia para ela, alterado. Ela, magra e baixa, com ar bem frágil. Poderia ter escapado dali se quisesse. Mas o medo era evidente. Ela falava qualquer coisa, não dava para perceber.

Aproximei-me, ultrapassando-os pois estavam parados no passeio. Quando passei, disse para o tipo (nessa altura de costas para mim) "é melhor parar". Não se virou logo. A rapariga olhou-me aterrorizada. 
O tipo continuava a ameaçá-la. Perguntei à rapariga "precisa de ajuda? Vou chamar a polícia." 

Então, o gajo virou-se para mim e gritou "não se meta, não tem nada com isto". Safa que era ameaçador. Feio mas feio, vesgo e os olhos raiados de vermelho. Veio direito a mim como se me fosse bater. Atravessei a rua depressa sem olhar para trás e a dizer alto "vou chamar a polícia". Só pensava como gostaria de ter físico para esmurrar aquele filho da puta. Ou um taco de baisebol para lhe dar com toda a força.

Segui à procura de algum polícia, nada. Ou alguém suficientemente forte que quisesse enfrentar aquela besta. Ninguém. Caramba, eram quatro da tarde.
Olhei para trás. O tipo tinha acalmado um pouco, seguiam pelo mesmo caminho que eu, um bom bocado atrás, lado a lado, a falar, aparentemente sem a violência anterior. 

Já estava a passar a hora da consulta. Quando virei para subir a António Augusto Aguiar , perdi-os de vista. Polícia nenhum. Ainda tremia. Só pensava na rapariga. Não sei qual seria a relação deles. Mas aquela rapariga frágil e bonita não combinava com aquele brutoldo violento. 

Já no consultório, lembrei-me que hoje se comemora o Dia Internacional para a Erradicação da Violência Contra as Mulheres. 

Quando entrei no gabinete do médico estava ainda a quente. Contei-lhe a história. Perguntou-me "não fotografou?" Não, nem tive tempo de me lembrar disso. Devia tê-lo feito!
Felizmente, o motivo que me levou ao médico era infundado e saí vinte minutos depois. Andei rapidamente até à rua onde os perdera de vista. Ninguém nem nenhum carro de polícia a registar um crime. Ufa! 

Este episódio, fez-me pensar em como agir, uma vez que não tenho força física para uma besta daquelas e não agir nem se coloca. Acho que o ter interrompido, falado, ameaçado com a polícia, teve algum efeito momentâneo mas senti-me mal por não ter feito algo que levasse aquele tipo à justiça. E agora?

Penso naquela mulher. Nas mulheres que se sujeitam a algum tipo de violência. 
Uma em cada três mulheres é vítima de abusos físicos em todo o mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde divulgados a semana passada

As mulheres têm que perder o medo. 

Os comportamentos violentos têm que ser punidos. Com todo o exagero. 

domingo, 23 de novembro de 2014

A minha tarde de domingo.

Há dias que andava em pulgas para comprar o último livro da Alexandra Lucas Coelho. Gosto de tudo o que escreve e, depois de ter lido as entrevistas que deu e ter percepcionado a história do novo livro, fiquei de água na boca. Tudo a ver comigo. 

Ontem vi algures que o livro tinha 5 estrelas. Tinha que o ter, até porque estava a três páginas do fim da Teoria dos Limites, de Maria Manuel Viana. E é sempre tramado sair duma leitura de que se gosta e entrar noutra. Quantas vezes desisto de um livro porque o anterior deixou marcas tão profundas que a seguir nada interessa. 

Por isso, senti que só O Meu Amante de Domingo podia encaixar agora. E não me faltam novos livros em espera. A forte contenção de custos que pratico quase há um ano só é ameaçada pelo impulso irresistível dos livros. 

Passei a manhã a arrumar as gavetas fundíssimas da cómoda, as das meias e da roupa interior. Esvaziar tudo, passar a pente fino, rever, seleccionar, dobrar e rearrumar. Tarefa que detesto. Estava para fazer isto há mais de cinco anos... Foi esta manhã. Não liguei o computador, não fiquei a ler os jornais na mesa da cozinha depois do pequeno-almoço, não fui caminhar nem andar de bicicleta. Não, portei-me super-bem e tratei das meias. Dos collants, por cores e espessura. Das meias de desporto. Das meias de lã até ao joelho. Das meias de lã mais pequenas. Das de algodão. Das de fantasia que nunca uso. Das repetidas. Das leggins que não sabia ter. Ufa!

Quando acabei, ao fim de duas horas, as costas doíam mas o dever estava cumprido. Até daqui a cinco anos, no mínimo!

Chovia, como sempre. À hora do almoço, quase não se via dentro de casa e o ímpeto para ficar abrigada era algum. Mas não, O Meu Amante de Domingo urgia. 

E precisava sair, respirar, sentir a cidade depois dos acontecimentos sinistros dos últimos dias. 


Equipei-me à maneira, gabardina, galochas, chapéu, chapéu de chuva, mochila. Pronta para caminhar depois do metro.

Fui até ao Chiado, directa à Bertrand. Que está toda mudada, com mais espaço, com menos livros, sem graça, sem o ar old fashion de antes. Até isto! O que nos restará?

Descansei. O livro estava lá, capa vermelha, edição Tinta da China. Objectivo atingido. Dinheiro certo. Olhar sem desvios. Uma volta pela rua à chuva e regresso ao metro, noutra linha, para a visita dominical à mãe.

Foi assim que percorri a Estrada de Benfica, do Jardim Zoológico ao Califa, a pé, defendida do cinzento molhado dos pés à cabeça. Há quantos anos não fazia este percurso a pé? Trinta e alguns.

O palácio do Conde de Farrobo, A Colmeia, o Arabesco, a rua dum namorado, o Sr. Manuel dos biscoitos. Ninguém na rua. Nem eram cinco.

Que sede, mais um bocadinho e um chá preto quentinho. É bom ter mãe e ter esta que é a minha. Claro que as calorias foram repostas por alguns Esses, os melhores biscoitos de sempre. 

De volta a casa, oiço a banda sonora do Hable con Ella e escrevo. 
Anseio pela noite, ultrapassados os telejornais, as detenções, os comentários, quando me deitar na minha caminha e me puser a ler O Meu Amante de Domingo! 



domingo, 16 de novembro de 2014

Mudanças e andanças.


Estes dias têm sido estranhos.

Apenas porque os acontecimentos passam como se não fizessem parte da minha vida. A velocidade das coisas não deu tempo para ficar a pensar na sua essência, nos porquês e nas consequências.

Vendo bem, não pensar muito na causa das coisas tem sido uma opção para prosseguir. Sobretudo, não avaliar culpas e culpados. Para seguir em frente, como se diz agora.

O fim-de-semana marca o fim duma fase, duma história, dum percurso.

Quando, por fim, paro de labutar, fico no sofá a olhar, de pijama, manta nas pernas, jornais à volta, televisão ligada, comida uma sopa e uma maçã para cumprir função, sem entusiasmo.

Não é um dia de semana. É sábado à noite e uma amiga telefona com um simpático convite para jantar na casa dela, com outras amigas, para comer castanhas, conversar, beber um copo. Agradeci e recusei com a desculpa verdadeira do cansaço e do pijama já vestido.

Queria estar sozinha. Preciso. Há uma ingratidão nisto porque os amigos são quem nos salva nas dificuldades, nos momentos difíceis. E gosto dos amigos, dos que tenho, de saber que os tenho. Gosto do dar e receber que os verdadeiros amigos implicam.

Já recusara com dificuldade um convite para um café durante a tarde, feito quando desembrulhava copos e outras coisas trazidas da casinha para a casa e tentava arrumá-los com êxito muito duvidoso. Sozinha. Não queres ajuda? Não, obrigada.

Stacey Kent cantava demasiado bem “What a Wonderful World”.

Apetecia-me assim. Sem interrupções. Sem questionários. Mas consegues fazer tudo sozinha? Vê lá, já não tens vinte anos. Eu sei. Dói aqui e ali, quando tento puxar um vaso pesadíssimo com uma oliveira que trouxe para a entrada de casa. Mais outro com um cacto gigante e outros tantos que os homens das mudanças deixaram mais ou menos no espaço mas a que falta dar um jeito.

Não me despeço da casinha. Às oito e pouco da manhã estava lá. Abri o portão e o pátio estava ensopado, brilhava ao sol repentino depois da imensa chuva anterior. 

A casinha é agora uma vastidão de caixas num desmantelamento que não dá margem para romantismos. A salamandra já foi vendida, não tem fogo e está tapada por caixas e coisas prontas a levar.

Há humidade fria quando abro a porta. Ainda bem, de facto, rapava-se um frio do caraças naquela casa. 

Enquanto os homens carregam a chaise longue amarela, sítio de tantos sonos e leituras, juntam-se vizinhas e vizinhos em bons-dias curiosos. Ah, vão-se embora? Como se já não soubessem que as notícias correm rápidas por ali.

À noite, recostada no sofá, a consumir as enormidades avassaladoras das notícias na televisão, tenho ideias para escrever revoltas muitas com tudo o que se passa pelo país e pelo mundo. Mas falta-me a força para ir buscar um caderno e apontar as ideias, sabendo que de manhã será difícil relembra-las exactamente da forma luminosa como surgem.

Na SIC, Marques Mendes, que evito ver e ouvir porque me enerva muitíssimo, braceja e agita as mãos pequenas como todo ele, afirmando repetidamente a sua inocência no caso dos vistos dourados. A jornalista, bem, pergunta então porque não saiu da sociedade JMF se diz já não estar activa desde 2011? Sem resposta.

São todos inocentes até deixarem de ser.

Nunca pensei, em toda a minha vida, que Portugal seria um desses países cheio de corruptos que associava às ditaduras da América do Sul. Mas vejo agora como a corrupção sempre medrou como a merda.

Antes e no Estado Novo. E depois. Agora de modo mais descarado porque fomentada a impunidade. 

Os medos pequenos que fazem o dia-a-dia das pessoas comuns estão cheios da noção do poder da corrupção. Não só no numerário ganho num favor feito mas na moral perdida nesse favor. Quem aldraba pequeno, aldraba grande. A teia constrói-se.


A amargura é maior porque confirmada a cada desilusão, a cada descoberta, a cada suspeita.

Vejo uma mulher na sua sabedoria feita pelos muitos anos, responder, na rua com mais casos de legionella, que ainda não bebe água da rede. Mas pode, diz o jornalista. E pode confiar? Não. Não confia. Beberá mais tarde, quando passar o tempo que confirme por si a confiança nessa água dita boa pelas autoridades.

Até a este nível a confiança está perdida.

Tomo o pequeno-almoço, bem dormida. No céu há esperança de um dia azul e com sol. Que não se confirma. Já está cinzento.

Sinto urgência para escrever. Tomo notas dos tópicos que a noite relembrou: corrupção, ética, jidahistas, Kobane, guerra, Gaza-Palestina, Boko Harum, as raparigas raptadas e violadas que não voltaram, as mulheres que são esterilizadas na Índia, Putin que abandona o G20 sem responder e afirma que precisa de dormir (?). 
Tantos filhos da puta e maldade a denunciar…

“Uso a palavra para compor meus silêncios”, leio no poema de Manoel de Barros “O apanhador de desperdícios”. Magnífico. 


sábado, 8 de novembro de 2014

António Lobo Antunes



Sábado e acordo cedo. Há um sol ténue que passa pela janela mas a seguir fica tudo escuro e chove. Penso em como a quantidade de luz afecta o nosso estado de alma. 

Enquanto tomo o pequeno-almoço, leio a entrevista de António Lobo Antunes à Ípsilon. Uma bela conversa. 


"Tenho um medo permanente de isto estar acabado", diz o autor. 

Simpatizo com este homem, com o que diz sobre os livros e os escritores e, no entanto, não o consigo ler. Não consigo avançar nos seus livros... Lamento tanto.

Vou fazer nova tentativa. Apetece-me depois desta entrevista. Livros dele que nunca acabei não faltam cá em casa. 

domingo, 2 de novembro de 2014

Pedalar selvagem.

Esta manhã senti saudades da beira Tejo selvagem de há mais de vinte anos quando andava sozinha de bicicleta, calmamente, a pedalar e a ver a cidade, a observar o casario e o céu.

A única preocupação de então era não apanhar com um carro em cima, o que era pouco provável num domingo de manhã, e encontrar um caminho por onde passar entre os contentores que impediam a proximidade com o rio.

Não havia ciclovias, apenas uma pequena faixa cobaia, estreita e mal desenhada, junto do actual Café Inn que julgo ainda nem existia.


Esta manhã, domingo azul de temperatura amena, meti a bicicleta no metro, direita ao Cais do Sodré, cheia de saudades de pedalar junto ao rio e de sentir o cheiro a maresia, sem pressa nem programa.

Mal lá cheguei, percebi que a coisa seria complicada.

Logo no percurso do Cais do Sodré / Meninos do Rio até à zona do Urban Beach, tive que me desviar várias vezes e parar para não ser passada a ferro por grupos de ciclistas, daqueles que vestem lycra de cores florescentes e parecem um PVP numa loja de equipamentos electrónicos do Martim Moniz, tanta é a parafrenália que trazem em cima.
Avançam em sentido contrário, aos magotes e a grande velocidade, a ocupar as duas faixas e ai de quem estiver à frente.

Esta manhã eram mesmo muitos, e seguidos! Arrependi-me por ter chegado tão cedo, apesar de já passar das 11h30m.

Grupos de homens, em alegre camaradagem, claro, que regressavam certamente dum percurso de vastos quilómetros iniciado muito cedo, o cheiro a suor e as tshirts verdes, amarelas e rosa berrantes a anunciá-los.

Fiquei logo bera. Queria pedalar olhando à volta, com espaço e sossego, e isso seria impossível. Teria que ir com tanta atenção ao caminho como na condução de um carro em plena hora de ponta…

Entre a Doca do Espanhol e o Museu da Electricidade tudo piorou ainda.

Apesar da largueza do passeio, todo o tipo de caminhantes insistiam em seguir na faixa das bicicletas. Por muito que tilintasse, não se desviavam obrigando a parar várias vezes para não esbarrar com as suas pernas grossas suportando os respectivos grossos abdómen feitos de muita cervejola e bifanas nos dias de futebol, que são todos. Não sei se adianta andarem por ali…

Para além disto, biciclavam famílias inteiras, pais e filhos de todas as idades, patinavam outros, treinavam de um lado para o outro umas centenas, a correr com toilettes preparadas cuidadosamente para o efeito e auscultadores no máximo e, por fim, milhares de turistas, de mapa na mão e cabeça à roda, percorriam toda a zona junto ao rio até atingirem os alvos finais, o Padrão dos Descobrimentos ou a Torre de Belém.


Aí, colocavam-se na imensa fila de muitos metros perante a estranheza dos locais, como eu, que não percebemos que uma visita à Torre justifique horas de espera a pé e sem abrigo das intempéries.

Para passar de bicicleta foi preciso tilintar, tilintar e tilintar e, depois, pedir uma brecha para passar, quase por favor.

Só já no passeio em frente ao edifício da Fundação Champalimaud foi possível recuperar algum sossego. Finalmente, consegui pedalar serenamente e olhar o rio e o mar lá longe, depois do Bugio.

Resolvi sentar-me um bocadinho a saborear uma barra calórica de chocolate e amêndoas com muito mais calorias do que as gastas no acidentado percurso.
As gaivotas passavam tangentes espalhando cocó. O rio brilhava conforme o sol o fazia, acima, ou não.



Suspirei pensando como este era um passeio a evitar para mim. Pedalar sem poder apreciar a vista, rio dum lado, casario do outro, com preocupações com a condução, não me interessa. Quantas vezes, em passeios de bicicleta pelo campo, lembrei com saudade este percurso que faço desde sempre.

O desenvolvimento não se faz só de infraestruturas. Estas têm melhorado muito mas não a educação das pessoas. Não respeitam as ciclovias e muitos dos ciclistas não respeitam as pessoas.
É um atropelo. Tal como não gosto da sujidade e da vandalização visível ao longo do rio, em especial na zona do Cais do Sodré e do Urban Beach. Serão estas inevitáveis face ao crescimento brutal do turismo? Acho que não.

Esta manhã senti que aquele percurso nunca mais seria o meu. Que nunca mais seria o meu espaço solitário feliz.